Em nome de valores cristãos, vereador destila ódio machista e
persegue uma colega de plenário enquanto tenta transformar a
Câmara em plateia cativa para sua autopromoção moralista
Márcio Almeida
É preciso ter cuidado com duas ideias que se ouviram durante os últimos dias, em alguns ambientes da cidade, a respeito da representação que a vereadora Lohanna França anunciou que iria enviar à corregedoria da Câmara Municipal — e que efetivamente enviou nesta semana — contra seu colega Eduardo Azevedo por quebra de decoro parlamentar. A primeira ideia diz que os reiterados ataques feitos por Azevedo a Lohanna seriam fruto de alguma dificuldade de autocontrole emocional que em certos momentos parece impedir o vereador de distinguir o pessoal do público e o faz adotar o tom e o vocabulário linguisticamente odiosos e agressivos que ele vem demonstrando em relação à colega, da qual, naturalmente, poderia discordar radicalmente, enquanto político e cidadão, sem ferir a ética. A segunda ideia diz que os ataques de Azevedo a Lohanna são uma questão pessoal restrita a ambos, enquanto parlamentares com posições divergentes, e não uma questão política que envolve a Câmara.
Não creio em nenhuma dessas interpretações. Primeiro, penso que não se sustenta a tese de que Eduardo Azevedo é um descontrolado emocional ou alguém que recebeu na infância deficientes noções de educação linguística e respeito humano. Apesar de exibir em algumas ocasiões, enquanto parlamentar, gestos e vocabulário francamente destoantes da discordância moderada que em geral se tem visto no Legislativo durante a atual legislatura, o parlamentar sabe o que está fazendo. Prova disso é que em outras
ocasiões que não envolveram diretamente a vereadora Lohanna, Azevedo demonstrou ponderação. Assim, por exemplo, permaneceu sereno na tribuna e nas redes sociais na semana em que seu irmão, enquanto prefeito, humilhou publicamente um servidor do setor de trânsito, enquanto tentava ganhar a simpatia de motoristas afirmando ser contrário a multas, gravou a humilhação em vídeo e a pôs na internet para que todos a vissem. Eduardo também já demonstrou ser capaz de se comportar de modo respeitoso e moderado ao discordar de colegas de plenário ou aceitar que eles tenham posições divergentes das suas. O que há de sua parte, portanto, é uma autoconsciente e deliberada intenção de ser desrespeitoso e agressivo com Lohanna, que nunca — registre-se aqui — referiu-se a ele ou lhe respondeu em termos semelhantes. Mas por que Eduardo não falou
alto e grosso com, por exemplo, Hilton de Aguiar ou Roger Viegas, que, entre outros, têm feito duras críticas a algumas das atitudes do governo de seu irmão prefeito? Por que não foi à internet insultar os dois, ou outros vereadores de quem discorda nestes ou em outros temas, em termos e tons parecidos com os que vem
usando em relação a Lohanna? A minha resposta para essa pergunta é a seguinte: Eduardo fez um cálculo estratégico de riscos e optou por discordar moderadamente de homens mais corpulentos do que ele, enquanto o fez sem moderação em relação a Lohanna, mais frágil do ponto de vista físico. Essa estratégia tem nome, caso alguém precise de que ele seja declinado aqui: chama-se covardia machista e misógina na vida pública.
Combater esse tipo de atraso moral indigno de Divinópolis não é uma questão pertinente a Lohanna apenas: é uma luta que diz respeito a todas as pessoas que não querem ver mulheres intimidadas por valentões na vida pública brasileira. Onde estão as defensoras e os defensores da dignidade política da mulher em Divinópolis? É hora de se manifestarem e de levarem o caso à Ordem dos Advogados do Brasil, à Comissão de Direitos
Humanos de Minas Gerais e, se possível, aos órgãos de mídia estaduais e nacionais, para que esse machismo político receba o nome que faz por merecer e assim se estimule, quem sabe, outras mulheres a se manifestarem contra os “Eduardos Azevedos” espalhados pela política do Brasil. Em segundo lugar, assim como não é um problema educacional de berço, nem um problema emocional de descontrole, os ataques de Eduardo Azevedo a Lohanna não são uma questão restrita a ambos. Uma rápida observação do noticiário local dos últimos meses mostra que Lohanna é apenas a face mais visível de uma cruzada que o vereador vem realizando em favor de si mesmo enquanto autoproclamado defensor do bem. Os passos dessa campanha de autopromoção política seguem estratégias discursivas já conhecidas do meio político, como a chamada “falácia do espantalho”, em que se elege alguém ou algo como inimigo público e passa-se a atacá-lo com um fervor calculado para tentar produzir, perante a sociedade, a impressão de que o autor dos ataques se destaca dos demais vereadores por ser mais puro e mais correto ou, no mínimo, mais empenhado na luta contra tudo que julga imoral. Lohanna é o “espantalho” eleito por Eduardo Azevedo. Isso, claro, é bastante conveniente ao vereador, já que ao atacá-la ele ocupa um tempo que, de outro modo, teria de ser usado para discorrer sobre
situações efetivamente imorais, como a humilhação pública de um servidor feita pelo atual prefeito ou a manutenção, pelo mesmo chefe do Executivo, de exorbitantes gratificações salariais concedidas pela gestão anterior a um grupo privilegiado do funcionalismo, com benefícios que chegam a acrescer 140% à remuneração nominal. Assim, ao discutir nas redes sociais, com Lohanna ou outros interlocutores, temas de sua cruzada moral como a utilização de noções de gênero em livros didáticos adotados pelo Ministério da Educação — questão federal, diga-se de passagem, sobre a qual os parlamentares locais não têm nenhum poder de legislar —, Eduardo vai evitando assuntos locais mais espinhosos para sua imagem de grande defensor da moralidade. Ao mesmo tempo, entretanto, vai se descolando da realidade em seu discurso e não percebe, ou finge não perceber, que não saiu de suas mãos de autodeclarado defensor do mercado e sim das de Lohanna, que ele chama de “comunista de iphone”, o inteligente projeto da “Liberdade Econômica”, que está recém-aprovado pelo plenário e tem o objetivo de desburocratizar a vida dos empreendedores divinopolitanos. Será patética ou trágica uma incongruência desse tamanho? Você, estimado leitor ou leitora, haverá de decidir.
A parte que cabe aos demais vereadores divinopolitanos na campanha autopromocional de Eduardo Azevedo é a de plateia obediente e sempre disposta a aplaudir, mesmo quando é obrigada a fazer escolhas constrangedoras. Um exemplo desse constrangimento se deu no início de março, quando, em momento mais restritivo do esforço de combate à pandemia de Covid-19, se discutia na Câmara o projeto de lei que propôs considerar locais de culto religioso como essenciais e, dessa maneira, permitir sua reabertura à visitação pelas regras do programa Minas Consciente. De modo civilizado e democrático, e como autênticos cristãos, os vereadores Flávio Marra e Wesley Jarbas, autores do projeto, souberam ouvir com respeito as inquietações de alguns colegas, entre eles Lohanna, que, a despeito de ser cristã, manifestou preocupação quanto aos riscos sanitários de uma eventual reabertura de templos naquele momento. Eduardo, por sua vez, não só esbravejou contra a colega como ameaçou explicitamente todo o plenário com uma fala digna de inquisidor medieval reencarnado em pleno estado laico do século 21: “Hoje eu quero ver aqui quem é cristão ou não”! O mesmo modo de agir ficou evidente em projetos da pauta moralista que Eduardo tem defendido no Legislativo. A receita que o vereador vem pondo em prática, importada da velha política, é bem conhecida do eleitorado. Em alguns casos, ele propõe a proibição de algo que já é proibido pela legislação elaborada por outras esferas governamentais e defende aquilo de que ninguém discorda no Legislativo municipal, criando assim uma cruzada moral que, no fundo, não tem objeto palpável para a atuação da vereança. Foi o que se deu em fins de maio com o projeto de lei que proíbe a administração municipal de destinar verba pública a eventos que promovam no município a “sexualização infantil”, como se fosse lícito, à luz da legislação brasileira, realizar eventos que promovam semelhante prática, já combatida por dispositivos tanto do Código Penal quanto do Estatuto da Criança e do Adolescente. A mesma estratégia de aparecer na tribuna e nas redes sociais propondo o que já está em vigor na legislação se deu com o recente projeto que pretende proibir pessoas condenadas por crimes sexuais de assumir cargos comissionados na estrutura da administração municipal. Entretanto, a administração já requer dos servidores, para provimento de cargos, certidão negativa criminal, o que rebaixa o projeto a mais uma demonstração do espetáculo moralista de Eduardo Azevedo. Tal espetáculo, desnecessário dizer, é feito à custa dos colegas de plenário, que são convidados a aparecer no noticiário votando redundantes propostas que, na prática, não têm condição técnica de produzir qualquer efeito concreto na vida real.
Em outras vezes, Eduardo conclama os colegas a votar propostas como a da proibição da utilização da linguagem neutra em escolas divinopolitanas que, no entanto, não utilizam tal linguagem em razão de ela não ser oficializada entre os componentes curriculares definidos pela legislação em vigor. No caso do projeto da
linguagem neutra, que está ainda em discussão, o constrangimento que a cruzada moralista de Eduardo está trazendo a seus colegas vereadores inclui discutir, nas comissões, um parecer demolidor do Conselho Municipal de Educação, que aponta a flagrante contradição da proposta com a realidade educacional e com preceitos da Constituição e das legislações federal, estadual e municipal. Em suma, nesses casos, assim como em outros, Eduardo Azevedo usa os colegas de plenário em um jogo autopromocional que os coloca no dilema de votar projetos incapazes de fazer qualquer diferença no ordenamento jurídico, o que acaba expondo a críticas a atual legislatura, ou ser apontados pelo dedo inquisitorial do vereador como inimigos da família e dos bons costumes ou, pior ainda, como aliados da “crise moral” do mundo contemporâneo. E, para que não restem
dúvidas de que ele não hesita em lançar seus pares à fogueira, Eduardo apresenta pequenos espetáculos de tribuna como aquele trecho de um recente pronunciamento em que lança dúvidas quanto à legalidade de gastos feitos pela Câmara, empregando uma técnica escorregadia que sugere sem afirmar abertamente e que, por não conter nomes ou dados concretos, lança, ao arrepio da ética, dúvidas generalizadas sobre os membros da atual legislatura sem mostrar provas colhidas de modo sistemático, no que parece ser uma manobra intimidatória dos colegas.
A conclusão impõe-se por si mesma: assim como não são um problema de falta de educação e de autocontrole emocional, mas uma estratégia política calculada, os ataques de Eduardo Azevedo a Lohanna França não são um episódio restrito a ambos. São, de fato, um dos momentos da grande cruzada moral que o vereador, sob a capa da defesa dos valores familiares cristãos, faz para enaltecer a si próprio como um parlamentar mais puro e ético que os demais. Desnecessário dizer que essa colossal vaidade, associada a tanto ódio contra alguém como Lohanna, que nunca o tratou de modo odioso ou desrespeitoso, pode ser tudo, menos uma manifestação cristã. O fato é que Eduardo vem se comportando na vida pública como se estivesse acima de qualquer controle ou parâmetro de atuação. Se não mostrar ao vereador que ele não pode mandar o respeito às favas, bancar o valentão machista e usar redundantes projetos de lei como instrumentos de autopromoção moralista e demagógica que depõem socialmente contra a capacidade do plenário, a atual legislatura vai produzir um projeto de ditador que parece empenhado em restaurar no século 21 a inquisição da Idade Média. Com a
palavra, a corregedoria.
Márcio Almeida é professor, jornalista e analista político em
Divinópolis.